quinta-feira, 12 de abril de 2012

Desinstitucionalização do “doente mental”: algumas reflexões a partir do Behaviorismo Radical

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro.

Desinstitucionalização do “doente mental” é um tema que vem sendo amplamente debatido na sociedade brasileira desde o final da década de 1970. O fim desta década foi marcante para que o movimento de substituição dos tratamentos manicomiais por outros modelos de tratamento ganhasse força. Isso aconteceu principalmente por causa da visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Brasil no ano de 1979. Neste ano Basaglia visitou o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil na época, hospital situado na cidade mineira de Barbacena.

                                                       Franco Basaglia

Entre os mineiros é comum dizer que todo “doido” vem de Barbacena. Barbacena recebeu esta fama por causa das atrocidades que foram cometidas no Centro Hospitalar Psiquiátrico visitado por Basaglia. Além deste centro Barbacena tem também um hospital psiquiátrico judiciário, vulgo manicômio judiciário. Durante décadas o tratamento dispensado aos pacientes internados no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena foi o mais desumano possível. Veja fotos abaixo:







Somente depois da visita de Basaglia e de uma série de reportagens feitas pelo repórter Hiram Firmino, para o Jornal Estado de Minas em 1980, que a situação começou a mudar. Até então o Centro Hospitalar era um depósito de “loucos”, tanto que as reportagens de Hiram Firmino se transformaram num documentário que recebeu o título de “Nos Porões da Loucura”. Porões é um termo bastante sugestivo, pois lembra um lugar escuro, geralmente úmido e mofado. Esta era a realidade do Centro Hospitalar naquele momento histórico, ou seja, era um lugar muito semelhante ou pior do que um porão.

Não restam dúvidas que a visita de Basaglia e a investigação de Firmino exerceram contracontrole sobre o modelo de tratamento manicomial adotado até então em Barbacena e em todo Brasil. Contracontrole são aqueles comportamentos que agem sobre certa fonte de estimulação aversiva tentando eliminá-la. Por exemplo, o sindicato que organiza uma manifestação para reivindicar aumento salarial exerce contracontrole sobre os patrões, pois está tentando eliminar a fonte de estimulação aversiva proporcionada pelos baixos salários, pelas condições de trabalho sub-humanas e pela ausência de valorização profissional. Comportamentos de contracontrole são mantidos por reforçamento negativo, pois são reforçados pela remoção da fonte de estimulação aversiva.

Voltemos a Basaglia e Firmino. A visita do pai da Reforma Psiquiátrica ao Brasil e o documentário de Firmino expuseram na mídia a degradante situação dos hospitais psiquiátricos brasileiros, colocando, sobretudo, em xeque a eficácia dos tratamentos baseados num modelo hospitalocêntrico e manicomial. Hospitalocêntrico porque toma os hospitais como a instituição central no tratamento de pessoas portadoras de sofrimento “mental” e manicomial porque adota como estratégia a internação antes de considerar outras possibilidades de tratamento.

A exposição na mídia deixou os governantes em uma saia justa. Alguma coisa precisava ser feita. Somado a tudo isso, o país no início da década de 1980 vivia o processo de redemocratização, e em meio a esse processo lutava-se pela construção de um Estado Bem-Estar Social que oferecesse saúde, educação e outros serviços públicos de qualidade à população. Então os movimentos sociais que encabeçaram a luta pela redemocratização e pela construção de um Estado de Bem-Estar Social também tiveram um papel importantíssimo, pois intensificaram o contracontrole exercido sobre o Estado brasileiro. É sabido que o resultado de toda esta luta foi a Constituição de 1988, conhecida como a constituição cidadã, uma vez que ela reconhece muitos direitos dos cidadãos que até então não eram reconhecidos, obrigando, desta forma, o Estado a oferecer as condições para que estes direitos fossem cumpridos. Entres estes direitos estavam o acesso a saúde pública, inclusive o acesso a políticas públicas de saúde mental.

                                                  Movimento "Diretas Já"

Então a reforma do modelo de assistência psiquiátrica brasileiro é produto de muito contracontrole, contracontrole que criou as condições necessárias para que o panorama da assistência aos “portadores de sofrimento mental” se modificasse, como também criou as condições para a promulgação da constituição de 1988. Outras mudanças foram alcançadas por este contracontrole, mas estas não vêm ao caso no momento. O que importa é compreender que boa dose de contracontrole foi necessário para que muitas coisas se modificassem.


Fato é que muita coisa se modificou na assistência prestada aos “portadores de sofrimento mental”. Importante ressaltar quais foram e continuam sendo os pilares que sustentaram e sustentam estas mudanças. Muitos avanços foram conseguidos graças a estes pilares, mas por outro lado eles impõem sobre a assistência em saúde mental limitações que impedem que estas mudanças sejam ainda mais profundas.

O trabalho de Basaglia foi um destes pilares. Franco Basaglia é o criador da reforma psiquiátrica, movimento que lutou durante a década de 1960 na Itália pelo fim dos manicômios, propondo como meio para tratamento dos “portadores de sofrimento mental” os centros comunitários em saúde mental. A principal bandeira do movimento reformista iniciado por Basaglia é a extinção do tratamento manicomial, pois este promovia a institucionalização do paciente. Por institucionalização se entende o processo pelo qual os internos dos manicômios se tornam dependentes das instituições em que estão internados, o que ocasiona o rompimento dos vínculos familiares e sociais, fazendo que estes internos percam a capacidade de dirigirem suas próprias vidas, ou seja, fazendo com que eles se tornem uma espécie de extensão destas instituições. A crítica ao manicômio e ao modelo de tratamento por ele proposto, é que o paciente é transformado em uma espécie de autômato, impedindo-o de construir uma vida mais saudável.

Os centros comunitários em saúde mental foi a alternativa proposta. São centros inseridos na comunidade de onde vem o “doente”, o que possibilita a manutenção dos vínculos familiares e sociais (comunitários), impedindo desta forma a institucionalização. Evitam-se as internações, e elas ocorrem somente quando for realmente necessário e se possível em leitos de hospitais gerais. Apregoa-se a necessidade de continuar mantendo o “doente” no seio de sua família. Os CAPS (Centros de Assistência Psicossocial) são inspirados neste modelo de tratamento proposto pelos centros comunitários em saúde mental.


A crítica do movimento reformista ao modelo hospitalocêntrico manicomial tem forte inspiração na obra de Foucault. Como se sabe Foucault dedicou boa parte de sua obra ao estudo dos sentidos atribuídos à “loucura” ao longo da modernidade, ou seja, ao longo do período que vai desde o final da idade média até o nascimento da psiquiatria no séc. XIX. Foucault é então o outro pilar do movimento reformista.

Foucault dedica especial atenção às instituições asilares, às instituições que foram utilizadas para promoverem a exclusão social durante toda a modernidade. Uma destas instituições é o manicômio. O manicômio foi criado para promover uma espécie de higienização urbana, para limpar as cidades daqueles que geravam algum tipo de incômodo, e entre estes estavam os “lunáticos”. A princípio não foram criados com o intuito de tratarem os “loucos”, mas apenas de exclui-los do convívio social. Mais tarde a psiquiatria ao longo do séc. XIX quando do seu nascimento, acaba por transformar o manicômio em seu laboratório.

                                                        Michel Foucault

Se antes do nascimento da psiquiatria o “louco” foi preso dentro do manicômio para que fosse promovida uma higienização urbana, após o nascimento desta especialização médica ele continua preso, mas agora para ser tratado. A psiquiatria confere ao trancamento do “louco” um status “científico”. Mas, ainda, assim, o “louco” continua trancafiado. Continua operando a lógica do trancamento do “louco”, e associada a esta lógica está a ideia da periculosidade. A ideia da periculosidade foi sendo gestada ao longo de toda a modernidade, e continua se fazendo presente mesmo depois do nascimento da psiquiatria. A psiquiatria moderna, de acordo com Foucault, é herdeira de todas as práticas sociais relacionadas à “loucura” ao longo da modernidade, e continua repetindo na essência os mesmos rituais de exclusão, mas a exclusão promovida pela psiquiatria do séc. XIX se faz em nome da ciência.

                                                         "Louco" perigoso?

Este modelo de tratamento persistiu até meados do séc. XX quando estourou a reforma psiquiátrica na Itália. Em outros lugares do mundo também surgiram outras propostas de reformas, mas um dos modelos que mais se popularizou foi o italiano, modelo que tem forte inspiração foucaultiana. E baseado na crítica de Foucault às instituições asilares, instituições que tiveram uma função higienista, a reforma de Basaglia, que serviu de modelo à reforma brasileira, acaba por questionar o modelo manicomial, propondo como alternativa centros descentralizados inseridos na comunidade de origem do “portador de sofrimento mental”, mantendo-o desta forma próximo às suas raízes, o que contribui para preservar os laços familiares e sociais, evitando, assim, a institucionalização. Trata-se de um modelo de tratamento que busca a desinstitucionalização. Ao se alcançar a desinstitucionalização, espera-se romper com todos os estigmas que rondam a “loucura”.

A ideia é muito simples. Inserindo de volta na família e sociedade o “doente”, todos perceberão que este pode viver em sociedade enquanto se trata, e que, sobretudo, ele não é perigoso. Desta forma, rompe-se com o estigma da periculosidade e todos os outros estigmas associados a este. No entanto, há uma radicalização do ideal anti-manicomial que sustenta o movimento reformista brasileiro, movimento de inspiração basagliana. Leva-se ao extremo a ideia da extinção dos leitos psiquiátricos e hospitais psiquiátricos públicos.

Há casos em que as internações são extremamente necessárias, e que precisam ser feitas em instituições psiquiátricas, pois estas são as instituições preparadas para este fim. Há casos que a internação quando feita em leitos de hospitais gerais acaba acarretando em transtornos para tais instituições, pois elas não estão preparadas para esse fim, e muitas delas não contam nem mesmo com alas psiquiátricas para prestarem um atendimento mais especializado.

Extinguir os leitos psiquiátricos é uma temeridade. É aqui que o Behaviorismo Radical pode dar sua contribuição. O Behaviorismo Radical nos oferece a análise funcional do comportamento, instrumento de análise extremamente importante, capaz de nos dar embasamento para decidirmos que casos precisam ou não de internação. É necessário criar instituições psiquiátricas com uma estrutura preparada para promover a análise funcional de cada caso.

Esta estrutura precisa se fazer presente tanto em hospitais psiquiátricos públicos, quanto nos serviços substitutivos como o CAPS. Ou seja, precisa se fazer presente em todos os níveis de complexidade da assistência aos “portadores de sofrimento mental”. Precisamos de instituições assistenciais em saúde mental que sejam funcionais, que estejam preparadas para discernirem em que casos é necessária a internação e em que casos ela não precisa acontecer. O “mal” que precisa ser atacado é o modelo manicomial, mas isso não precisa implicar em extinção dos hospitais psiquiátricos. Se os hospitais psiquiátricos estiverem equipados para serem funcionais e para promoverem a análise funcional de cada caso, eles não precisam ser extintos, pois há casos em que eles são extremamente necessários. Há casos em que o tratamento é inviável sem que exista uma estrutura especializada encontrada somente nos hospitais psiquiátricos. O que deve ser revertida é a lógica manicomial, o que não implica em extinção dos hospitais psiquiátricos públicos ou em diminuição radical de leitos nos mesmos.

                                                       Lógica Manicomial

Análise funcional é o que as instituições psiquiátricas precisam para funcionarem bem, para promoverem a desinstitucionalização do “doente mental”. Levada a cabo com todo o seu suporte teórico, a análise funcional coloca em xeque ainda a concepção de “doença mental”, pois nos faz entender que todo comportamento por mais estranho que possa parecer, é comportamento modelado pelas contingências de reforço. E embora muitos quadros como a esquizofrenia não sejam completamente entendíveis, ou seja, não tenham suas causas devidamente elucidadas, ainda, assim, é possível empreender uma análise funcional dos comportamentos comuns a estes quadros. No caso da esquizofrenia, por exemplo, pode se analisar funcionalmente comportamentos como delírios e alucinações, e a partir de uma boa análise funcional se programar a modelagem destes comportamentos, de modo que eles não produzam grandes interferências na vida social do sujeito.

Se é possível modelar alucinações e delírios a partir da realização de uma boa análise funcional, por que não proceder desta maneira? Mas muitos se opõem a este tipo de intervenção por considerarem que ela age sobre “sintomas”. Mais tarde o sintoma seria substituído por outro, conforme advogam os defensores das abordagens psicodinâmicas. Se o sintoma é o problema, por que não eliminá-lo? No entanto, o Behaviorismo Radical não trabalha com esta distinção entre sintoma e doença. Sintoma é comportamento, e é ele que precisa ser mudado. No fim das contas não há sintomas, pois não há doenças, mas sim comportamentos que precisam ser modificados a partir da alteração das contingências de reforço, comportamentos que produzem desconfortos e tais desconfortos serão eliminados quando os comportamentos forem alterados.


A verdadeira desinstitucionalização passa pelo questionamento do conceito de “doença mental”. Há doença mental? De um ponto de vista behaviorista radical não há doença mental, mas sim comportamentos selecionados e mantidos por certas contingências de reforço. Por isso ao longo do texto termos como “doença mental” e outros foram colocados entre aspas, pois estes não fazem sentido se entendermos que não existe doença, mas sim comportamentos a serem modificados. A verdadeira desinstitucionalização passa por uma mudança na forma de se pensar o tratamento dispensado às pessoas, que apresentam determinados quadros psiquiátricos, quadros que precisam de cuidados mais especializados. Ao invés de se pensar o tratamento a partir da dicotomia saúde versus doença, por que não pensá-lo em termos de contingências de reforço? Pensando assim não há porque falar em doença, o que acaba removendo um obstáculo, pois não sendo mais um doente o portador de certos quadros psiquiátricos não precisará mais ser temido, ficando seu tratamento condicionado a realização de uma boa análise funcional, análise que indicará a condução mais adequada ao caso, apontando inclusive em que nível de complexidade da rede de assistência em saúde ele deverá ser atendido (CAPS, Hospitais etc).

Criar serviços substitutivos como CAPS é uma boa alternativa. Mas não precisamos ficar atacando moinhos como Dom Quixote, ou seja, se a criação de serviços substitutivos é um avanço, pois aproxima o “doente” de suas origens e o insere na sociedade, por outro lado a vigência deste modelo não implica em um completo fim dos Hospitais Psiquiátricos Públicos ou numa redução drástica de leitos psiquiátricos. Extinguir os leitos e hospitais é atacar o problema errado, ou seja, é lutar contra moinhos. O problema é de outra ordem: a reversão da lógica manicomial que interna sem critérios. Da mesma forma que internar sem critérios é extremamente prejudicial, deixar de internar casos em que a internação se faz necessária também o é.


A demonização do hospital psiquiátrico em nada contribui para a reversão da lógica manicomial, pois esta pode continuar operando dentro dos serviços substitutivos, bastando para isso que se amarre o sujeito quimicamente e não necessariamente com uma camisa de força, impedido assim, a realização de um efetivo trabalho de modificação das contingências responsáveis pelos comportamentos que ocasionam todo o sofrimento. Promover o tratamento baseado num modelo assistencial dicotomizado entre saúde e doença, é correr o risco de deixar de olhar para as contingências que mantêm os comportamentos que produzem sofrimento.

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2 comentários:

  1. Muito interessante, essa reflexão. Só cuidado com algumas pedras que podem vir do pessoal que é libertário, mas nem tanto, hehe. Gostei das comparações feitas, principalmente utilizando um aporte teórico que em geral é massacrado por pessoas que defendem a psicologia social/institucional/comunitária sem o mínimo de crítica, adotando um discurso dogmático e quase fascista. Teu argumento em relação aos hospitais psiquiátricos faz sentido. Há casos em que a internação é muito necessária. Só há que se ter cuidado com a lógica asilar, não fazê-la prosperar novamente. Isso não significa que não se deva ter espaços para internação; espaços restritos, entretanto, pra não cairmos no perigo de querer medicalizar e "institucionar" a loucura.

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    1. Caro Ramiro Catelan, em primeiro lugar gostaria de agradecer pela contribuição. Em segundo lugar gostaria de dizer que você captou o espírito da reflexão que o texto propõe. Concordo que precisamos tomar cuidado para não ressuscitarmos a lógica hospitalar, lógica que é perversa e desumanizante. Todavia, como você mesmo assinalou, há casos em que a internação é extremamente necessária. O problema dos Foucaultianos extremistas é o dogmatismo, e o dogmatismo aprisiona da mesma forma que as grades dos antigos manicômios.

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