sábado, 25 de agosto de 2012

"Eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim": narcisismo, ciberespaço e capitalismo

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro.

Caetano Veloso em tom poético cantou que "Narciso acha feio tudo que não é espelho". O Mito de Narciso é uma história que nos remete à mitologia grega, uma história que fala sobre um jovem que ao se deparar com sua imagem na  lâmina d'água de um lago apaixona-se por si mesmo. O mito é utilizado para fazer referência ao apego que muitas pessoas têm a si mesmas. Estas pessoas são geralmente chamadas de narcisistas ou até mesmo de egocêntricas.

Narcisismo e egocentrismo, dois termos de grande difusão social. Esta difusão se deve à Psicanálise, que se apropriando do mito de Narciso utilizou-o para explicar a dificuldade que muitas pessoas têm para adiarem suas satisfações, sendo portanto guiadas por um sentimento de urgência. Desta apropriação surgiu o termo narcisismo, que de acordo com a Psicanálise trata-se de uma fixação que ocorre nos primeiros estágios do desenvolvimento humano.

Ainda de acordo com a Psicanálise, nos primeiros estágios do desenvolvimento somos guiados pela urgência em satisfazer nossas necessidades. A criança chora e a mãe dá-lhe o peito. A criança resmunga e a mãe a livra do incômodo das fraldas. A satisfação quase sempre é imediata. Disto podem resultarem registros mentais que levam a busca de satisfação imediata, e no futuro a pessoa pode se tornar um adulto que toma a si mesmo como a medida de todas as coisas, ou seja, que coloca o seu "eu" (ego) como centro do universo.

Ego é outro termo psicanalítico. Quase um sinônimo de "eu" o ego seria a estrutura mental responsável por negociar com o Id (inconsciente) quando as satisfações de nossos desejos ocorrerão. Se por um lado o ego é regido pelo princípio de realidade, é dominado pela razão, por outro lado o id é regido pelo princípio do prazer, buscando a todo instante a satisfação de desejos reprimidos. Um ego frágil vai ceder aos impulsos do id, tendo, portanto, dificuldades em adiar a satisfação dos desejos e de lidar com frustrações. Deriva desta dificuldade o egocentrismo. Daí nota-se a aproximação entre os conceitos de narcisismo e egocentrismo.

Deixando de lado toda a mitologia psicanalítica, pois a explicação psicanalítica é tão mítica quanto a mitologia grega, fiquemos apenas com aquilo que se descreve como sendo narcisismo: dificuldades em adiar a satisfação e colocar-se como centro do universo. Há que se esclarecer as contingências de reforço que podem ser responsáveis pelos comportamentos agrupados sob o rótulo de narcisismo, para em seguida compreendermos como o modo de produção capitalista e também o mundo do ciberespaço têm modelado pessoas com dificuldades em adiarem suas satisfações, pessoas que colocam a busca do prazer como o centro de suas vidas.

A dificuldade em lidar com frustrações, em adiar o prazer e buscá-lo incenssantemente a ponto de sacrificar aspectos importantes da vida, como, por exemplo, a vida social, tem a ver com o modo como em nossa história as consequências foram seguindo nossos comportamentos e nos tornando predispostos a intolerância, ou seja, nos tornando sensíveis ao adiamento de nossas satisfações, de modo que diante de frustrações agimos quase sempre com ataques emocionais.

Esta sensibilidade ou propensão à intolerância quase sempre é produto de esquemas de reforçamento contínuo. Neste tipo de esquema o reforço segue o comportamento praticamente todas as vezes que ele é emitido. Este tipo de esquema costuma estar presente em histórias de pessoas "mimadas", de pessoas que tiveram que se esforçar muito pouco para obterem a satisfação de suas necessidades e desejos, pois os pais ou outros membros da família quase sempre proviam estas satisfações ao menor sinal de alteração emocional.

É sabido que quanto mais imediato um reforço ocorre depois de  um comportamento, maior a chance deste comportamento ser fortalecido. Então, há uma relação entre a imediaticidade da consequência e a força do comportamento. Pessoas que tiveram satisfações imediatas proporcionadas pelo meio familiar, e se estas satisfações eram imediatas às queixas, às manifestações de insatisfação, acabam se tornando intolerantes às frutrações, ou seja, se tornam incapazes de adiarem os seus prazeres, agindo quase sempre por um senso de imediatismo. Portanto, a intolerância como padrão comportamental pode ter relação com o esquema de reforçamento e com a imediaticidade com a qual os reforços foram apresentandos ao longo da história de modelagem de certos comportamentos.

Sendo assim, pessoas podem se tornarem reféns das contingências de reforço, ou seja, da forma como os reforços são apresentados, se tornando imediatistas e incapazes de adiarem a satisfação de seus desejos e necessidades. São modeladas não somente para serem intolerantes às frustrações, como também para buscarem a satisfação imediata. Estas pessoas se tornam presas fáceis do ciberespaço, espaço em que a satisfação pode ser obtida apenas com um clique. A satifação não obtida na realidade pode ser alcançada através do ciberespaço.

No ciberespaço tudo parece ser mais fácil. As amizades são virtuais, sendo assim, os aborrecimentos podem ser evitados bloqueando ou excluindo alguém da rede de contatos. O prazer pode ser buscado em chats e redes sociais. Até mesmo pode se obter reforços sexuais por meio do ciberespaço. Há inúmeros chats que oferecem sexo virtual por meio do uso de uma webcam. Com uma webcam e um computador com acesso a internet pode se ampliar as possibilidades de obtenção de reforços.

Talvez seja hora para parar e pensar os efeitos da cultura digital sobre o comportamento das pessoas. Essa cultura não criaria circunstâncias favoráveis para a modelagem de comportamentos narcisistas? Essa cultura não favorece o fechamento sobre si mesmo de modo que as pessoas passem a entenderem que se bastam a si mesmas? Essa cultura não acaba por favorecer o individualismo? Quais são os efeitos da obtenção tão facilitada de reforços com apenas um clique?

Se na vida real os reforços podem ser adiados por causa de uma série de circunstâncias, no ciberespaço eles são facilmente obtidos. Mas que tipos de comportamentos estes reforços estão reforçando? Comportamentos de não fazer nada, ou de se empenhar em atividades que concorrem com outras mais produtivas. Não por acaso muitas empresas bloqueiam o acesso a chats e redes sociais, pois o comportamento de navegar em tais redes e chats concorre com o comportamento de trabalhar, o que afeta a produtividade e acarreta prejuízos. 

Seria exagero conjecutar se o mundo digital não estaria contribuindo para a criação de uma cultura do imediatismo? Creio que não. E talvez ele esteja apenas fortalecendo contingências que já operavam no mundo antes de sua existência, contingências que fazem parte de um mundo capitalista "em que tempo é dinheiro", um mundo do "just in time", um mundo regido pela urgência em produzir, pois existe de outra parte a urgência em consumir, um mundo regido pela produção versus consumo.

Se é preciso produzir com urgência, pois existe a necessidade urgente de se consumir o que se produz, cria-se um círculo vicioso em que o consumo é sinônimo de satisfação que não pode ser adiada, em que o consumo é realizado sem que se pense nas consequências, sem que haja consciência das contingências que o determinam. Desta forma o consumo é realizado sem se questionar sobre o que está sendo consumido, pois o que importa é consumir, o que importa é obter prazer.

O produto deste ciclo entorpecedor é a construção de pessoas cada vez menos conscientes dos determinantes de seus comportamentos, ou seja, pessoas que são incapazes de assumirem um posicionamento crítico com relação ao seu modo de vida e sobre o mundo em que vivem, pessoas inseridas numa teia de consumo em que elas mesmas são um produto a venda em stands reais e virtuais. O não pensar nas consequências produz pessoas alienadas, pessoas enamoradas pelo seu prazer como Narciso por sua imagem refletida no espelho d'água, pessoas que podem ser descritas com o refrão da música do Ultraje a Rigor: "eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim".


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