terça-feira, 5 de março de 2013

A Psicologia e o SUAS

O presente texto foi retirado do Jornal do Psicólogo do CRP-MG ano 27 número 99. Embora não esteja fundamentado em uma perspectiva analítico-comportamental, ou seja, ainda, que, não esteja fundamentado nos pressupostos teóricos e filosóficos do Behaviorismo Radical, o mesmo apresenta uma visão muito interessante sobre o trabalho do profissional da Psicologia no âmbido do Sistema Único de Assistência Social. É sabido que Assistência Social vem se abrindo à Psicologia, o que faz dela um campo para atuação dos psicólogos. Portanto, conhecer esse novo campo de trabalho é de extrema importância. Boa leitura!

AS PRÁTICAS DA PSICOLOGIA NO SUAS

Por: Jacques Akerman (CRP-04/5482) - Jacques é professor da Universidade FUMEC e psicólogo do SUAS/Betim.

Estamos em meio a uma temática muito rica na relação entre a Psicologia e o SUAS, que nos apresenta alguns desafios no tocante à inserção dos profissionais nesta política pública. A natureza e o objetivo geral do trabalho, no campo da assistência social, colocam para seus operadores a função de produzir o empoderamento cidadão de pessoas, famílias e comunidades em situações de vulnerabilidade e risco, visando à sua superação. Na fronteira com a pobreza e com a violência e na necessidade de articulação com outras políticas públicas, devemos, de início, considerar que o trabalho na assistência social requer do psicólogo a produção de intervenções complexas, já que se dirigem a um objeto necessariamente complexo, uma vez que multideterminado.

As políticas públicas remetem a um recorte, ao campo específico do “como viver juntos” e pressupõem um universal conectado e indissociável ao campo dos direitos de cidadania, entendida aqui como gestão do que, na lei, é antecipadamente considerado como necessário (GARCIA, 2009). A Psicologia, que se interessa pelo que não se ajusta ao “para todos”, que acolhe situações que envolvem as dimensões da cidadania e do desejo, entra neste cenário visando à construção de uma referência, uma saída, uma estratégia para os sujeitos (indivíduos e famílias), que se encontram do lado de fora do acesso aos direitos ou que resistem à ordenação universal ao preço do seu próprio sofrimento.

Uma primeira questão ética aparece: como tratar a dimensão de responsabilidade dos sujeitos envolvidos nas situações de vulnerabilidade ou de risco? No modelo neoliberal de subjetividade, cada um cuidaria sozinho da sua carga e ao Estado caberia propiciar as condições necessárias para que o mercado de consumo funcione sem sobressaltos. Não é a vertente que nos interessa...

Já um Estado, que visa ao bem comum, deve se orientar pela referência da equidade, na medida em que a desigualdade deve ser combatida a partir do desenvolvimento de estratégias que considerem que os desiguais devem ser tratados de forma desigual. Aqui encontramos nossa orientação!

Uma das vertentes éticas da Política de Assistência Social visa combater o assistencialismo, que pode ser definido aqui como uma espécie de sensibilidade, até mesmo, solidariedade daqueles que pretendem ajudar, pois sabem antecipadamente do que o usuário precisa, uma vez que o assistencialista sustenta-se em valores, por ele, considerados universais e, até mesmo, naturais. O saber do assistencialista pode ser traduzido como uma missão que busca preencher a ignorância e corrigir o desvio moral do usuário pela oferta de objetos e informações que, supostamente, lhe faltam.

A este ponto que é o combate às práticas assistencialistas, devemos também incluir o combate ao psicologismo que, da mesma forma que o assistencialismo, significa um saber antecipado, porém patologizante sobre o sofrimento e exclui o sujeito, reduzindo-o à condição de doente porque portador de um desvio da normalidade.

Podemos considerar então, que nessa política é preciso dar outra dimensão à nossa intervenção que deve ser sustentada por um paradigma nomeado como psicossocial. Este termo não é sem consequências. Quando apresentamos o termo paradigma é para indicar um ordenador poderoso, que envolve o pacto de uma comunidade em que há um ponto de amarração das suas práticas, reflexões e análises, orientadas e, ao mesmo tempo, limitadas por um determinado conjunto de crenças e visões de mundo que produzem o contorno sobre o real do qual se trata. Nesse sentido, nossa comunidade, a dos operadores, gestores e formadores da política de assistência social, está orientada pelo paradigma psicossocial, que se apresenta como ponto de intersecção, de atravessamento, de indissociabilidade das dimensões individual e coletiva da vida. Esta junção tem encarnado um problema: qual a dose de um e de outro? Há como estabelecer uma preeminência de um sobre o outro? O social determina? É possível pensar o indivíduo fora do seu campo?
As práticas possíveis se concentram, portanto, neste espaço entre o “para todos” e o “pelo menos um”, que não se encaixa na oferta para todos.

Neste sentido, no plano ético-teórico da Psicologia a questão sobre se há um único ponto de determinação na estrutura da subjetividade pode ser considerada superada. Afirmamos que há uma perspectiva reducionista na prática daqueles que vão considerar a história do indivíduo circunscrita apenas à dimensão intrapsíquica e isolada da sua inserção sociofamiliar. A transmissão de uma cultura se constitui no olhar, na linguagem, nas manipulações sobre o corpo, na voz e na apresentação dos objetos que o outro, orientado pelo Outro Social, dispõe para acolher o que interpreta sobre as necessidades e demandas do sujeito de quem se encarrega. Neste circuito, vão se estabelecendo as matrizes, os modos de satisfação e as letras do
que, para o sujeito, vão engendrar sua existência e produzir as bordas da sua condição singular.

Portanto, um ponto a desconstruir é a concepção de que o psicológico se dirige ao individual e o social ao coletivo.

Nesse sentido, a discussão central não parece ser sobre se o psicólogo pode ou não realizar, no âmbito do SUAS, a psicoterapia ou as terapias de modo geral. Sabemos, inclusive, que a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (2009), na descrição do PAIF, afirma que “as ações do PAIF não devem ter caráter terapêutico” (BRASIL, 2009). Esta frase carece de mais explicações e mesmo de melhor definição conceitual. Há uma infinidade de dispositivos dirigidos ao sofrimento que podem ser tomados nesta dimensão terapêutica, pois produzem alívio. O terapêutico é, portanto, uma palavra muito imprecisa, que deve ser repensada. Será necessário dar maior clareza ao caráter do que não deve ser feito no âmbito da proteção social. Para iniciar o debate, propõe-se que as práticas já consolidadas da clínica ampliada e da clínica do social, na vertente sócio-histórica, sejam consideradas e as intervenções sustentadas pelo “psicologismo” vedadas.

Fonte: Jornal do Psicólogo - Ano 27, N. 99.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais. 2010.

GARCIA, Célio. Estamira, novas formas de existência. Belo Horizonte: Ophicina, 2011.

6 comentários:

  1. Sou Psicóloga e acadêmica de Direito. Compreendo a dificuldade para relacionar essas duas Ciências e desenvolver um bom trabalho na área pública.
    Se por um lado a Psicologia trabalha com o simbólico e imaginário, o Direito concentra sua atenção no plano concreto.
    Conciliar essas duas vertentes, é uma tarefa árdua e que ainda vai levar um tempo para que se consiga o pleno entendimento e aplicação adequada aqueles que precisam buscar auxílio no Sistema Único de Assistência Social.
    Abraços:
    Sil
    http://meusdevaneiosescritos.blogspot.com.br/

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    1. Mas o relacionamento entre esses dois campos do saber não precisava ser tão difícil. Uma vez que a Psicologia tem como objeto de seus estudos o comportamento, tem que se compreender que as condições materiais ou a ausência delas afetam o comportar-se. No caso da Política de Assistência Social, temos uma política que visa criar as condições materiais que vão conferir mais dignidades às populações que se encontram em situações de vulnerabilidades sociais.

      Abraços e obrigado pela contribuição Silvana!

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    2. Oi Bruno:
      Seu pensamento está correto.
      O problema é que o Direito NÃO analisa a situação sobre um prisma subjetivo.
      Lembre-se que o Direito se baseia principalmente na Constituição (e em outros textos legais), e portanto, não há menção sobre questões subjetivas.
      Apesar do Direito proibir (ou permitir) determinadas condutas, sua preocupação continua sendo o fato concreto.
      Por isso, eu escrevi que é uma relação difícil.
      Essa semana mesmo, estava conversando com um professor a esse respeito, e a gente percebe que já houve avanço, até porque é uma necessidade social que as transformações sejam colocadas em prática.
      Todavia, ainda há um caminho a percorrer para haver um legítimo entendimento e compreensão, que Direito e Psicologia juntos, podem e devem atender as demandas da população.
      Bjs.:
      Sil

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    3. Você tem toda razão, embora, o direito por mais objetivo que seja, ao ser aplicado acaba criando condições para o surgimento de novos modos de subjetivação, e estes modos alteram tão profundamente o funcionamento da sociedade, que obriga o próprio direito a se adequar às transformações que surgem de todo este processo. Então, a relação entre direito e psicologia acaba sendo bastante dialética, mas também muito frutuosa.

      Abraços e mais uma vez obrigado pela contribuição Silvana!

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  2. Acho que o Direito já evoluiu muito graças à Psicologia. No caso da guarda compartilhada a criança só tem a ganhar.Mesmo separados os pais educam juntos.Não tem aquela coisa de só pegar de 15 em 15 dias. Abração! Lylian

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    1. De fato a Psicologia tem contribuído para uma maior humanização do direito, por isso o diálogo entre estas duas ciências precisa continuar ocorrendo.

      Obrigado pela participação. Abraços.

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